General Henrique Lott: O golpe da legalidade


11/11/2005 17:36

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O vice-presidente do Senado Nereu Ramos e Henrique Baptista Duffles Teixeira Lott<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/03-2008/Nereu e Lott.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a> Navio "Tamandaré"<a style='float:right;color:#ccc' href='https://www3.al.sp.gov.br/repositorio/noticia/03-2008/navio.jpg' target=_blank><i class='bi bi-zoom-in'></i> Clique para ver a imagem </a>

Quando do enterro do general Canrobert Pereira da Costa, que ocupava a chefia do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA), o coronel Jurandir Bizarria Mamede, lotado na Escola Superior de Guerra (ESG), acabou provocando uma das maiores crises da história do Brasil, ao propugnar, em sua oração fúnebre, contra a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek de Oliveira, vitorioso com 36% nas eleições de 3 de outubro de 1955, derrotando os candidatos Juarez Távora, da situação, que obteve 30% dos votos, Adhemar de Barros e Plínio Salgado. A oposição afirmava que JK havia sido eleito com votos de "ignorantes, mistificadores e comunistas", e alegavam também que não tinha conseguido a maioria absoluta dos votos, e defendiam a anulação do pleito.

Canrobert tinha antes da eleição afirmado em uma palestra no Clube Militar, do qual era presidente: "... arrogarem o direito de oprimir a nação e maculam à vista de todos os verdadeiros e insofismáveis postulados da ordem democrática que fingem defender e aclamar, para, afinal, poderem anulá-los pela artimanha ou pela força".

Mamede em seu provocativo discurso assim falou: "Pouco importa, afinal, se hajam exibido hipocritamente escandalizados, ante a justeza de tuas palavras, os maiores interessados na perpetuação dessa "mentira democrática", que tão bem conhecem exploram e "da pseudolegalidade imoral e corrompida" em que buscam justificativas fáceis para os seus apetites de poder e de mando... Não será por acaso indiscutível mentira democrática, um regime presidencial que dada, a enorme soma de poder que concentra em mãos do Executivo, possa vir a consagrar, para a investidura do mais alto mandatário da nação, uma vitória da minoria? ...Não será também, por acaso, pseudolegalidade patente, aquela que ousa legitimar-se para a defesa intransigente de um mecanismo adrede preparado para assegurar, em toda a sua plenitude, o voto do analfabeto proibido por lei? ...Compenetrado das pesadas responsabilidades que cabem aos altos chefes militares, sobretudo em país como o nosso, em marcar, a duras penas, para a concretização de seu ideal democrático e onde por isso mesmo a violência pó parte daqueles chefes será indispensável, muitas vezes, para prevenir dias amargos para o povo e evitar a desordem publica e a derrocada nacional " soubeste manter sempre, com serenidade e decisão, a posição do mais justo equilíbrio entre um partidarismo " inadmissível para teus foros de soldados " e a passividade e a omissão " de um qualquer forma incompatível com teu elevado conceito do que seja a verdadeira liderança militar."

No cemitério, nas últimas homenagens ao general Canrobert, estava também o ministro da Guerra general Henrique Baptista Duffles Teixeira Lott, que apesar de contrariado, ouviu calado a fala afrontossa de Mamede e só não reagiu, dando-lhe voz de prisão, em respeito à memória do morto e para não constranger a família enlutada. Para a surpresa de Lott, o coronel Mamede ao encerrar sua fala foi efusivamente cumprimentado pelo presidente da Câmara dos Deputados Carlos Luz, deferência que não havia feito com os demais oradores.

Lott resolveu punir Mamede por infringir o Regulamento Disciplinar do Exército; mas antes quis consultar o presidente da República, mas acabou sabendo que Café Filho havia sido internado pela madrugada daquele 3 de novembro, no Hospital dos Servidores "por ter sofrido um distúrbio cardíaco". O ministro contatou o brigadeiro Gervásio Ducan, o chefe interino do EMFA, órgão superior da ESG, que não concordou em punir ou devolver o coronel ao Exército. Com essa resposta Lott resolveu aguardar o restabelecimento do presidente, para tomar a atitude que julgava correta. No dia seguinte o ministro foi ao hospital aonde tentou se avistar com o chefe da Nação, não sendo permitido, sob a alegação de que "seu estado de saúde ainda inspirava cuidados". Curiosamente, no dia seguinte os jornais publicavam fotos de Café no leito do hospital, sorrindo e fumando...

Em Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, desde o discurso do coronel Mamede, acompanhava com cautela a marcha dos acontecimentos e para ele tudo era mesmo uma articulação de um golpe contra a sua posse. O presidente eleito permaneceu desde então no Palácio da Liberdade, sede do Executivo mineiro, em companhia do governador Clovis Salgado, que havia colocado as tropas da polícia de Minas Gerais em prontidão. JK seria empossado para o cargo que havia sido democraticamente eleito pela vontade do povo brasileiro.

Dias depois, uma junta médica julgou necessária uma licença para Café Filho. Com o afastamento do chefe da Nação, o seu substituto constitucional era o presidente da Câmara Federal, deputado Carlos Luz, do PSD de Minas Gerais. Apesar de conterrâneo e do mesmo partido do presidente eleito não o havia apoiado durante a campanha.

O ministro queria resolver o caso Mamede e solicitou uma audiência com o novo presidente. No Catete, se viu obrigado a aguardar por quase duas horas para ser recebido. Quando finalmente Carlos Luz o recebeu, Henrique Lott explanou quatros opções para resolver o problema, mas Luz respondeu que não iria atende-lo. Lott incisivamente respondeu então que não era mais ministro da Guerra e perguntou para quem iria passar o cargo. O escolhido seria o general da reserva Álvaro Fiúza de Castro, e este pediu para que a transmissão do cargo fosse realizada um dia depois.

O general Lott dirigiu-se a sua residência militar, e informou ao general Odylio Denys, seu vizinho e comandante da Zona Militar do Centro, sediada no Rio, que havia pedido demissão e que passaria o ministério no dia seguinte a Fiúza. Denys sugeriu que o Exército fosse colocado de prontidão, mas Lott não julgou necessária a medida. Contrariado Denys se despediu e foi para seu lar. Tarde da noite, Lott viu as luzes da casa de Denys acessas, surpreso ligou para saber o que estava ocorrendo. Odylio informou que estava em reunião com vários generais, estes indignados com o ocorrido no palácio, e também não concordavam com sua saída do ministério, resolveram então confabular. Henrique Lott então resolveu agir. Na madrugada, de 11 de novembro de 1955, foi ao seu gabinete e articulou com os generais uma medida de força. Tropas e blindados cercaram os principais prédios públicos e toda a capital da República, tornou-se uma verdadeira praça de guerra.

Ao ser informado dos acontecimentos, o surpreso Carlos Luz, foi aconselhado a procurar abrigo no ministério da Marinha, em companhia de vários ministros, membros do governo, e do jornalista e deputado federal Carlos Lacerda, mas acabaram por se refugiar a bordo do cruzador "Tamandaré", que estava em reparos nas caldeiras, na Ilha das Cobras. Sob o comando do capitão de mar e guerra Silvio Heck, o navio deixou o porto com destino a Santos, de onde esperavam contar com o apoio do governador Jânio Quadros e das guarnições militares em São Paulo. Quando o navio ultrapassou o Pão de Açúcar, na saída da baía de Guanabara, os canhões de vários fortes, inclusive o de Copacabana, abriram fogo, assustando os ocupantes do navio de guerra e em especial os moradores do Rio, que colocaram nas janelas dos prédios da orla marítima centenas de lençóis brancos dependurados; o medo era que o cruzador respondesse com seus canhões e algum projétil atingisse a população civil, como na revolta da armada em 1893. Os tiros caíram no mar perto do navio levantando grandes colunas de água. Lacerda foi informado que seriam meros tiros de advertência. Segundo ele, "em matéria de advertência... chegou bem perto".

Uma mensagem cifrada foi recebida no "Tamandaré", dando conta que o ministro da Aeronáutica brigadeiro Eduardo Gomes estava indo para São Paulo, de onde tentaria defender o governo. Mas várias unidades estavam solidárias ao general Lott, inclusive a guarnição militar de Santos, que informou que receberia à bala o navio, caso tentasse entrar no porto. Ao tomar conhecimento do grave comunicado, Carlos Luz reuniu todos para deliberar. Depois das argumentações, ficou decido pela maioria, que era melhor retornar ao Rio. Foram passados vários rádios, solicitando garantias aos envolvidos. O novo governo laconicamente informou que o pleito seria atendido, menos para Lacerda, em virtude da sórdida campanha por ele engendrada que resultou na morte do presidente Getúlio Vargas em agosto de 1954. O governo não podia se responsabilizar por sua integridade.

Legitimando o gesto do ministro da Guerra, o Congresso Nacional foi convocado extraordinariamente, e votou, no próprio dia 11 de novembro, o impedimento de Carlos Luz; na Câmara Federal foi 185 votos, contra 72, e no Senado 43 votos, contra 9. Logo depois, o vice-presidente do Senado Nereu Ramos, do PSD de Santa Catarina, foi empossado como presidente da República interino, pelo próprio general Henrique Lott, a quem coube ler o termo de posse no salão de despachos do Palácio do Catete.

Na manhã do dia 12, os ocupantes deixaram o "Tamandaré", que havia retornado ao Rio, e foram para suas residências, menos Lacerda que se viu obrigado a procurar asilo na embaixada de Cuba, para onde seguiria, dias depois, em um avião comercial norte-americano. Carlos Luz, afastado da presidência da Câmara dos Deputados continuou com seu mandato parlamentar e na sessão do dia 14, em um longo discurso tentou explicar sua posição diante dos fatos desde o discurso do coronel Mamede e a atitude do general Lott. Apesar do clima tenso e dos inúmeros apartes da oposição ele conseguiu se fazer ouvir.

Dez dias depois, em 21 de novembro, o presidente João Café Filho tentou reassumir seu cargo, mas não conseguiu. O Congresso Nacional foi novamente convocado e aprovou o seu impedimento em sessão extraordinária na madrugada do dia 22. Café Filho impetrou, ainda, no dia 21, um habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal, na tentativa de reverter a situação, mas o governo, em uma jogada de mestre, solicitou ao Congresso a decretação de estado de sítio no país, que foi aprovado em 25 de novembro, e assim o STF não pode julgar o pedido do presidente afastado. E em 31 de janeiro de 1956, com toda a pompa e circunstância Juscelino Kubitschek tomava posse como presidente da República, iniciando uma nova era para o Brasil, com seu programa de governo "50 anos em 5".

(*) Antônio Sérgio Ribeiro, advogado e pesquisador. É funcionário da Secretaria Geral Parlamentar da ALESP.

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