Para além de tijolos e concreto, um lugar se estabelece a partir das pessoas que escrevem sua história. É sob a perspectiva do indivíduo, suas experiências e marcas, que esse espaço se reconhece e se redimensiona, dando contorno a universos particulares e coletivos. E permitindo que seus traços arquitetônicos se misturem às contradições e vivências daqueles que o ocupam. Nesse imaginário coletivo, nem sempre é possível dizer onde começa um e acaba o outro. A história da Assembleia é, portanto, a história das pessoas que por aqui passaram. Que aqui ainda estão. Nada mais legítimo que a Casa do Povo ter suas linhas escritas por sua gente. Por isso, a Assembleia Legislativa de São Paulo traz um espaço destinado aos seus personagens. Às pessoas que contribuíram por meio de seu trabalho e que, por que não dizer, foram fundamentais na construção do maior Legislativo do País. Sejam bem-vindos à Funcional! Pessoas: eis o que sempre interessou a Teresa Rosa da Silva. Funcionária da Alesp durante 34 anos - todos eles trabalhando com recursos humanos - e aposentada desde 2016, retornou à Casa para falar conosco: "Resolvi dar a entrevista para falar das pessoas, com o olhar para as pessoas", inicia. Teresa conta o início de sua vida profissional: filha de mestre de obras e dona de casa, foi incentivada primeiro a estudar. "Na minha casa começamos a trabalhar meio tarde, só próximo à separação dos meus pais. Comecei a trabalhar com 17 anos, comparativamente aos meus colegas isso foi tardio. Já estava terminando o colégio", compara. Ainda durante sua formação em economia, trabalhou com comércio internacional em banco e, antes de chegar à Alesp, passou pela Secretaria Estadual de Turismo. "Tinha muitos amigos prestando concursos públicos à época, reflexo da grande crise econômica e da hiperinflação por que passávamos. Eles me disseram que prestariam para a Alesp e vim também", conta. Entrando na Alesp em 1982, foi lotada no serviço que dava posse aos novos funcionários. "Fiz o concurso junto com dois amigos. Foi muito engraçado porque quando eles entraram eu já estava dando posse [risos]", diverte-se. Segundo ela, foi a função certa para a pessoa certa: lidar com as pessoas. "Penso sempre em uma brincadeira: sou filha de mineiros, que são bons contadores de história (Graciliano Ramos, Drummond...). E para contar histórias você tem de estar com as pessoas, conviver com elas, e aí passar tudo o que se passa com elas: muitas coisas boas, coisas ruins, embates, coisas que você consegue resolver, outras não...", considera. Nascida em São Paulo, fala sobre a influência que recebeu por meio das viagens a Minas Gerais quando criança. "Ficava impregnada de tudo aquilo. É aquela história: o mineiro não tem mar, então tudo se desenvolve dentro de Minas [Gerais] mesmo. Fica virado para a montanha, fica dentro, conversando... não sai e vai abarcando as coisas, é tudo com você e com o seu povo. É virado, estou de costas para o mar, o mar não chega até a mim. Então é isso: você está ali, conhecendo as pessoas daquele lugar, não vem ninguém de fora. É um pouco ir se reconhecendo nas pessoas, e conversando com isso. Foi isso que eu fiz na Alesp: fui recebendo as pessoas, conhecendo, caminhando com elas um pouco, dando posse, mostrando o espaço etc", descreve. Ao contar que passou pela fase de readequação de cargos na Alesp, Teresa explica que era uma transformação dos níveis de exigência com relação à formação ou ao tempo de exercício. Cargos de nível médio passaram a ser de nível superior, e os funcionários foram reenquadrados na nova situação. "Peguei uma fase de mudanças de cargos, por meio da legislação que vigorava antes da nova Constituição de 1988. Foi meu maior choque quando entrei, não entendia o que estava acontecendo. A linguagem e a forma das coisas eram muito desconhecidas para mim, porque vinha de banco, de uma outra estrutura. Além disso, a quantidade de processos era muito grande frente ao número de funcionários que tínhamos para trabalhá-los, mas era um grupo muito bom", relembra. "Nessa fase de reestruturação pela qual a Alesp passava, ainda havia no quadro de funcionários muita gente que era da época do AI-5, do fechamento dos parlamentos estaduais. Os funcionários ficaram afastados por cerca de dois anos, depois precisávamos acertar as contagens de tempo de serviço [para aposentadorias], trabalhei muito isso." Ela diz que era fascinante: "Na verdade, você vive a história. Com 20 anos de idade, vai ouvindo falar, vai conhecendo as pessoas", sorri. Sobre o aprendizado do novo trabalho, Teresa recorda-se: "Tive dois professores: Josefina Bolfer, que era impecável nos ensinamentos sobre legislação, e Luiz de Godoy Cotti, que era um ensinamento completo, explicando tudo detalhadamente, relacionando com o direito administrativo. Foram as duas pessoas que me ensinaram muito, principalmente sobre a conversa entre as áreas administrativa e parlamentar - que é a razão de existir da Alesp". Além da posse dos aprovados no mesmo concurso público que prestou, Teresa também fez parte da comissão que elaborou outro certame para a Alesp. "Quando se trata de concurso, você fica o tempo inteiro interagindo com as pessoas. Começa na contratação da empresa, passa pelas que ficam interessadas, e depois pelo contato com as aprovadas. Fiz isso praticamente a minha vida toda de trabalho na Assembleia: esse primeiro contato com quem toma posse. Recebendo as pessoas, explicando, indicando a parte legal, apresentação de documentos etc." Depois do serviço de posse, ela conta que passou um tempo no de lotação, onde existia um trabalho para traçar o perfil do profissional que tomava posse, a fim de encaixá-lo na melhor função possível. "A Divisão de Desenvolvimento de RH, hoje sob a gestão de Regina de Souza Moreira, junto da equipe de apoio aos funcionários, grupo das psicólogas e assistentes sociais, tentava afinar a lotação o máximo possível de acordo com o passado da pessoa, do trabalho que ela já desenvolveu. Mas havia perfis bastante curiosos e difíceis de encaixar, como os quatro engenheiros navais que havia no quadro de funcionários!", espanta-se. Pessoas Para Teresa, não há dúvidas: "O que a Alesp tem de melhor são as pessoas, indiscutivelmente. Quem faz o Parlamento funcionar são as pessoas. O maior patrimônio que a Alesp tem é o seu quadro funcional - e a formação desses funcionários, que é muito consistente. Temos uma quantidade de doutores (pós-graduados) aqui que é excepcional. E o cara é doutor porque ele acreditou em tal coisa e se empenhou, não é nada obrigatório". Ela conta que outra reestruturação administrativa da Casa, feita pela Resolução 776/1996 (que instituiu o Serviço de Treinamento), teve efeitos sobre o perfil dos funcionários. "A Alesp não tinha um sistema que favorecesse a busca de formação ou qualificação pelo funcionário. Hoje existe a possibilidade de ter os cursos pagos e até mesmo de dispensa do trabalho para poder estudar. O Parlamento hoje precisa disso, o funcionário do quadro efetivo precisa ser qualificado", argumenta. Teresa considera que os funcionários efetivos acabam tendo outras funções nos processos da Casa. "O quadro em comissão, como é muito volátil, é diferente. Alguns partidos conseguem ter os mesmos funcionários por um período tal que essa formação possa se tornar consistente. Mas, no geral, mesmo que o trabalho seja desenvolvido dentro do gabinete, esse funcionário se torna consistente mesmo quando toma contato com o quadro efetivo " principalmente nos departamentos de Comissões e no Parlamentar. É aí que isso se encorpa, que começa a tomar consistência, daí é que saem os bons projetos de lei." Fora da Alesp Ativa? Teresa é bastante. "Adoro me exercitar, ao ar livre, espaço aberto, ao sol... Faço yôga. Adoro nadar, mas tenho medo de água. Não sei nem como aprendi a nadar! Nado em piscina, mas não tenho coragem de me enfiar em rio e nem em lagoa. Com o mar, tenho o maior respeito. Não faço brincadeiras com água de jeito nenhum", confessa. Dentre outras paixões, não esconde a típica mineirice: "Sentar e conversar! E adoro encontrar amigos por acaso na rua! Se viajo e encontro um amigo no lugar então, é choque! [risos]". "Adoro viajar! Mesmo que você vá a Pedrinhas Paulistas [risos], encontrará no caminho pessoas que lhe contarão histórias, o que fizeram na vida, o que as levou por aquele caminho... Um caminho meio parecido com o seu, mas diferente porque casou-se dois anos antes, ou dois anos depois... Perfeito, viajar é perfeito! Para qualquer coisa que você queira aprender na vida, vá viajar", aconselha. E, como era de se esperar, Teresa não abandona seu romantismo e a paixão pelas pessoas e suas histórias. "Gosto muito de andar, posso andar quilômetros, à toa, ouvindo música... Ou sem ouvir nada, só olhando, olhando as coisas, entrando em lugares... Quando viajo acabo conhecendo os lugares por isso. Gosto de andar também em lugares onde as pessoas normalmente não vão, além dos pontos turísticos. Tento entender as conexões das cidades, ouvir o movimento do lugar, ver como as pessoas compram no mercado, como negociam..." - seus olhos e sorriso brilham. Planos e perspectivas Ao falar de seus sonhos, o humanitarismo em Teresa resplandece. "Ah, eu tenho um sonho daqueles... estou trabalhando nele, mas não rolou ainda: ser contadora histórias. A minha ideia é fazer isso em instituições que atendam a crianças em situação de risco - principalmente social, mas também de saúde. [Quero ser] aquela pessoa que faz isso com uma certa técnica, mas também com o coração. Já estou fazendo o curso, mas ainda não achei o lugar [para atuar]", afirma. Ela relata que a ideia surgiu durante um episódio de internação do filho, ainda criança, para uma cirurgia de urgência. "Enquanto estava internado, em recuperação, passou um grupo que fazia visitas e contava histórias para as crianças, faziam brincadeiras e tal. Foi uma coisa impressionante! Eles passavam e era uma diversão, as crianças ficavam animadas - isso me chamou a atenção", relembra. Mais velha de três irmãs, tinha uma mãe e um pai que contavam histórias durante sua infância e até a adolescência. "Hoje, adulta, você conta as histórias do dia a dia com as pessoas, mas de qualquer jeito está contando histórias, está fazendo a revisão da vida das pessoas. Mas antes, três mulheres juntas, todo mundo falava pouco, né? [ironiza] Para fazer a gente dormir, minha mãe contava histórias. Histórias dos próprios avós, claro que um pouco aumentadas", recorda-se. Então, conte a história, Teresa! "O pai da minha mãe era do sul de Minas [Gerais], e caçava pequenos animais, como preás. Ele tinha cachorros perdigueiros que, para caçar, não podiam ser alimentados, por isso dormiam presos. Saía com esses cachorros e ficava um ou dois dias caçando, depois voltava cheio de histórias - dos amigos que encontrou, da caçada, do que fez, do que aconteceu com os animais etc. Então as histórias da minha mãe eram sempre essas. Já as do meu pai eram do imaginário - os mineiros das montanhas, com as histórias dos santos, dos animais que atacavam, de lobisomem, mula sem cabeça... O imaginário mineiro é de uma criatividade! Guimarães Rosa, né, gente? Você abre aquilo, lê um parágrafo e fala: "Meu Deus do céu, de onde tirou tudo isso?". Daquelas terras, daquele ter o mar distante, do lugar, das pessoas...", e embala... Mesmo com tanta força e movimento, Teresa considera que fez a opção certa ao se aposentar. "As coisas têm uma limitação, e você tem de entender isso. Tenho colegas que vão ficando e não discuto, pois isso é extremamente particular. Mas acho que é equivalente a comprar um carro e ainda permanecer usando-o dez anos depois: ele é obsoleto, já existem tecnologias mais modernas. Por mais que você se atualiza e busque coisas, acho que tem comportamentos [que não se atualizam]. É assim ó: você foi criado - vou fazer um paralelo com a música - por pais que ouviam Elvis Presley, e depois vêm para o jazz... Aí, você pode até entender o funk, mas é difícil conversar com ele [risos]! Nem faço crítica, mas fica muito longe das suas possibilidades, entendeu? Realmente fica. São os comportamentos, os códigos, que por mais atualizados que sejam... As gerações efetivamente têm seus códigos. Além disso, a geração hoje não se define pela quantidade de anos, mas pela tecnologia. Nós estamos falando de outra coisa", opina. Para Teresa, um bom exemplo dessa dificuldade de atualização podem ser os hábitos de leitura das diferentes gerações. "Eu dava livros de presente, para a geração do meu filho, pros amigos que são mais velhos, eu dava livros de presente. Dou livro de presente até hoje, para quem gosta de ler. Ok que eventualmente a gente já dá e-book, né... [risos], mas eu continuo dando livros de presente." Ela interrompe a fala, pensativa, e comenta: "Um pequeno paralelo: as pessoas não leem, né? Tenho amigos que são inteligentíssimos e tal [mas dizem] "eu já li um pouco". Hoje quando vejo um jovem lendo, fico até olhando pra cara dele [risos]". Em seguida, retoma o raciocínio: "Então, você fica obsoleto, não tem essa conversa assim. Mesmo que queira... Eu tenho estante na minha casa, né bicho [muitos risos]! Tenho um iPad com uns 600 livros, mas compro livro de papel. Não resisto, porque é um negócio que é atrativo, é legal, me diverte, conversa comigo, conversa com a minha geração", resume. Teresa, sempre romântica, enfim. O que é a Alesp para Teresa? "A Assembleia é o lugar onde tive a oportunidade de enfrentar diariamente o que é muito diferente. Na vida diária, pode-se desviar daquilo que é agressivo, daquilo que você acha que não é legal. Mas, como trabalhava com pessoas, muitas vezes tinha colegas de sala bacanas, mas que acreditavam naquilo né... Então, foram 34 anos fazendo negociação. Quando se está prestando um serviço, você tem de aprender a lidar com as diferenças. Aprender isso é uma lição de vida."